24 maio, 2016

Carta en busca 2016

 Romper com as indiferenças
                          para humanizar a Humanidade… 




“Vivemos da vida uns dos outros. Não existem vidas mais importantes
que outras. Todos somos alimento para a vida do mundo” (*)

Como será possível experimentarmos uma genuína confiança nas relações pessoais e entre os povos?

Por entre os gritos das populações espoliadas pelas guerras e de todas as vítimas de quaisquer injustiças ou violências, os nossos corações não podem ignorar a atual atitude depredadora e desagregadora da Terra e de tudo o que ela contém, e naturalmente também do Universo.

Negar o individualismo…

Uma nova soberania está a impor-se em larga escala na nossa casa comum através de decisões políticas, subjugadas a interesses financeiros: o domínio da alimentação (1).

"Vindimias no Douro", /Leonel de Castro/Golabl Imagens
Esta situação, que fragilizará ainda mais os deserdados, requer de nós capacidade para vencer a ambição de nos isolarmos no nosso conforto individual ou coletivo. Felizmente, nos mais diversos espaços geográficos, estão a crescer atitudes de generosidade favoráveis a um desenvolvimento do bem comum. Os horizontes daqui nascidos permitem-nos um discernimento mais consciente da bondade primordial da existência humana: “Fomos acolhidos pela Terra, pela corrente da Vida, pela natureza, pelos nossos pais, pela sociedade. O acolhimento, portanto, nos constitui” (2).

No mais íntimo de nós pressentimos que “nenhum ser humano, nenhuma sociedade pode viver de forma isolada, sem confiança”. Com estas palavras, o irmão Aloïs recorda-nos que “escolher a confiança não significa fechar os olhos ao mal. A confiança não é ingénua ou fácil; é um risco.” Pronunciado há cinco anos em Berlim, cidade-símbolo da divisão entre povos e famílias, este seu apelo manifestava a urgência de um entendimento global mais profundo: “Os muros não existem apenas entre povos e continentes, mas também mesmo ao nosso lado, e até no coração do homem” (3).

…afirmar o coração

A confiança derruba o egoísmo, o bastar-se a si próprio. “A autossuficiência cria fatalmente a solidão”, escreveu o Abbé Pierre, em 1959, na França do período pós-guerra mundial, acautelando que uma decisão pessoal neste sentido é sempre conseguida “à custa da infelicidade dos outros” (4).

Na parábola dos vindimadores, Jesus coloca-nos exatamente diante de alguém que se decidiu por aquela conduta (5). Os que trabalharam desde manhã revelaram ser a favor de um sistema social contrário à fraternidade, que lhes garantia um estatuto de distinção, mas baseado em circunstâncias apenas acidentais (6).

O que eles exigiram não foi só um salário diferente dos companheiros que fizeram menos horas de jornada, o que pretendiam sobretudo era receber um valor mais elevado do que o ajustado com o patrão… Esta atitude é, para Jesus, contraditória com o “reinado de Deus” - tempo de concretização da fraternidade universal, acontecimento maior da Humanidade: “os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos” (7). E só assim ganha sentido um retrato impossível de um proprietário, à margem dos padrões existentes. Tendo consciência que os contratados logo pela manhã não conseguiriam terminar o trabalho antes do pôr-do-sol, correu a buscar os que ninguém quisera empregar. No final do dia, reconheceu terem sido estes trabalhadores decisivos na finalização da vindima, resolvendo compensá-los com o mesmo valor dos primeiros.

A ousadia do dono da quinta revela-se contra a corrente de todas as mentalidades: não desejariam os vindimadores convocados logo ao início do dia serem também contratados no dia seguinte? Estaria garantido mais um dia de salário… Esta autossuficiência de grupo torna-se “terrivelmente insidiosa”, porque se justifica na razão de uma “plena comunhão”, mas só “com os seus mais próximos” e apenas “até determinado grau” (8).

No tempo presente os discursos desmobilizadores continuam a fazer acreditar na nossa insuficiência para percorrer caminhos de confiança em cada ser humano. E tudo parece conjugar-se para se confundir o ser com o ter, para se admitir o “salve-se quem puder”.

Jesus, que não se deixa orientar por padrões abstratos, propõe um novo relacionamento, nunca desligado das concretas capacidades e atributos de cada pessoa: assumir transpor a escassez de amabilidade interior orientará o nosso viver para decisões humanizadoras.

E assim será possível dissipar as suspeitas que impossibilitam a gratuidade, ponto de partida para abrir o coração ao reconhecimento de que “vivemos da vida uns dos outros”.

comunidade grão de mostarda

(*) VIVIMOS DE LA VIDA UNOS DE OTROS, Monasterio de Santa María de Sobrado, Galiza (Espanha) ver: http://www.monasteriodesobrado.org/index.php/2015/08/16/vivimos-de-la-vida-unos-de-otros/

(1) O momento coletivo que vivemos - um cenário de usurpação de territórios, muitos deles santuários da biodiversidade - emerge de uma ilimitada sede de controlar o mundo. Perante a “bolha” imobiliária, as hipotecas tóxicas e os paraísos fiscais, em 2008, a FAO já alertava que seriam os pequenos agricultores, a pastorícia e as populações que se autoabasteciam em culturas autóctones, os primeiros e maiores prejudicados desta nova atividade das multinacionais em monopolizarem terras, através de negociações nunca esclarecidas com os poderes políticos, por forma a tornarem-se únicas detentoras da produção agrícola. A título de exemplo, as cinco maiores multinacionais do setor alimentar controlam 75 por cento do comércio mundial de cereais, situação com dolorosos reflexos em vários países como no Madagáscar, onde 70 por cento da população, assegura a ONU, vive abaixo do limiar da pobreza. Contudo, o Estado alugou, por cem anos, metade das terras de cultura para milho a uma empresa sul-coreana.
Não se trata de submeter somente militar ou tecnologicamente os países e os povos, o que está em causa é subordinar o mais elementar da sobrevivência humana: a alimentação. Conferir Gustavo Duch Guillot e de Fernando Fernández Such, in “La agroindustria bajo sospecha”, Cuadernos Cristianisme i Justícia, edição 171, Novembro 2010. Acesso gratuito: https://www.cristianismeijusticia.net/files/es171.pdf

(2) “De la hostilidade a la hospitalidade”, de Miguel González Martín, Cuadernos Cristianisme i Justícia, edição 196, Novembro de 2015. Acesso gratuito: https://www.cristianismeijusticia.net/files/es196.pdf

(3) O nosso viver, ciclo permanente de interdependências, convoca-nos ao acolhimento, enquanto essência vital da nossa humanização. Só assim a confiança no ser humano se revelará, não como aventura sem futuro, mas sim como decisão capaz de transpor desertos de indiferença, como sublinhou do irmão Aloïs, prior da Comunidade de Taizé, no Encontro Europeu de Taizé, em Berlim, na reflexão da noite de 28 Dezembro de 2011. Ver: http://www.taize.fr/pt_article13284.html

(4) Abbé Pierre, “Fraternité”, Librairie Arthème Fayard, França, 1999. Edição em português : Editorial Notícias, 2000

(5) “Jesus disse: O reinado de Deus é semelhante ao proprietário de uma vinha que saiu de madrugada para contratar trabalhadores. Combinando um denário por dia, mandou-os para a sua quinta. A meio da manhã, viu na praça homens desocupados. Convidou-os também a trabalhar na vinha: Ide que vos darei o que for justo. E eles foram. Saindo de novo ao meio-dia e a meio da tarde, fez o mesmo. Ao cair da tarde, encontrou outros sem nada para fazer e perguntou-lhes: Por que estais aqui todo o dia sem trabalhar? Eles contestaram: Ninguém nos contratou. E o senhor da vinha disse: Ide para a minha vinha.
Ao anoitecer, ordenou ao seu administrador que reunisse os trabalhadores e retribuísse a todos por igual valor, começando pelos que tinham chegado por último e acabando pelos que contratara logo pela manhã. Tendo pago um denário aos contratados no final do dia, os primeiros pensavam que receberiam mais. Porém, ao receberem o mesmo que os outros, protestaram: Os que chegaram mais tarde trabalharam simplesmente uma hora e foram igualmente retribuídos como nós, que suportámos o peso do dia e um sol ardente. O dono da quinta, porém, contrapôs: Não vos faço injustiça. Ajustastes comigo um denário. Aceitai, então, o que vos pertence...E Jesus concluiu: no reinado de Deus, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos.” Mateus 20, 1-16

(6) A narrativa possui detalhes que nos permitem ir ao cerne do problema. Após contratar os vindimadores da primeira hora, o dono da quinta voltou à praça para buscar os “desocupados” e, mais tarde, os que “ninguém contratara”. Os que diariamente buscavam mão-de-obra nas praças das cidades já conheciam os mais hábeis e os mais fortes. Seguramente que acontecera com os personagens da parábola de Mateus: se ninguém lhes ajustara trabalho, isso revelava - e hoje a lógica do sistema empresarial em nada difere - um paradigma antissocial e meramente economicista, relegando os mais frágeis, os menos talentosos ou menos capazes. Todavia, desvalorizador da dignidade humana.

(7) A parábola termina com uma frase-chave para a compreensão do “reinado de Deus”. Ao dizer reinado e não reino, Jesus indica a sua circunstância histórica-temporal e não espaço-lugar. Ou seja, não se trata de um desejo para além da realidade experienciada com os nossos corpos.
No “reinado de Deus” - plenitude da dignidade humana -, os mais fragilizados ou os mais incapazes terão sempre do seu lado os dotados de maiores conhecimentos e de melhores competências. Caminho a percorrer em esperança atuante e afetuosamente…

(8) Perigoso argumento para quem se deixar enredar nele, anota o autor de “Fraternité” (ver nota 6): “A autossuficiência do seu clã leva-o a querer devorar.” E cada um dos seus membros pode ser o próximo. Os processos de convivência - desde o ambiente familiar, passando pela Escola até à decisão de se ser autónomo -, induzem as consciências a que o desenvolvimento humano só se consegue a partir do individualismo…

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